sábado, 8 de novembro de 2014

Era ela, era eu

Havia chegado antes da chuva, a tempo de me esconder embaixo dos Arcos. Estranho estar ali, sozinho, naquele local onde sempre estava a dois. Contudo, o tempo já havia passado e os meses embolados transformaram-se em quase dois anos de ausência. Não lembrava como era estar só e, ao mesmo tempo, sentia-me absolutamente desamparado ao lado de qualquer pessoa que não fosse ela. Sem perceber, já fazia parte da fila para comprar ingressos para um show nada especial, quando surgiu um amigo atravessando os pensamentos.

Era ela na cabeça e ele ao meu lado. Não sabia se deveria olhar nos olhos do cara, pois encarar dificulta qualquer estratégia de deixar a mente correr solta. Porém, divagar tornara-se um hábito incontrolável e, sim, de fato, deveria forçar-me a prestar a atenção ao papo sobre... perdi o início. Perguntou-me algo, mas agora realmente não sei o que dizer. Peço, por favor, para repetir. Ela já era. Sobraram os Arcos, a fila, a chuva, com a maioria de rostos desconhecidos, e ele, gente boa, perguntando sobre filhos.

Cara, então, poderia ter um molequinho ou uma menina de nove anos, mas na época resolvemos tirar. Porra, quem sabe estaríamos juntos, com o filho. Inconscientemente falava no plural, merda de ato falho. Às vezes, também notava que a conjugação verbal embaralhava-se, passado, presente, futuro, tudo misturado com lamentações. Muito poderia ter ocorrido. Se o tempo tivesse passado de outra forma. Papo brabo esse de filho. Como seria agora ser pai? Era ela a mãe, era eu o pai de ninguém. O amigo, ele, não soube disfarçar o constrangimento quando viu minha cabeça ir ao encontro dela. Talvez vocês ainda possam ter uma cria, disse, claramente em um esforço para me animar. Porém, agora eu já era novamente ela. Era ela a mãe daquele rebento vazio que fecundou em meu peito ao partir.