segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O Homem das Multidões: o excesso de Margô

Existem os solitários por opção e os por falta de opção. Essa lacuna simbolizada pela palavra falta faz toda a diferença. Há falta no excesso e na necessidade de buscar alguém para se comunicar. O perfil excessivo ou compulsivo não consegue permanecer só por instantes, afastando todos que poderiam um dia se apresentar, tornando-se um solitário por vocação.

Como em todos os seus filmes, o diretor Marcelo Gomes - dessa vez em parceria com Cao Guimarães - toca no ponto mais profundo do ser humano, aquela ferida insistente em sua tarefa de nunca cicatrizar. Assim, a personagem Margô, controladora dos trens de uma estação do metrô, divide-se em olhar para o fluxo do transporte público e para o intenso fluxo de sua tela de celular. Compulsiva, ela necessita das teclas, das mãos ativas, ironicamente lesionadas e protegidas por faixas fisioterapêuticas. A continuidade do filme fez questão de alterar as mãos mobilizadas. A cada plano, a personagem sofria de paralisação forçada em um braço diferente, o que de forma alguma impedia o seu desempenho comunicativo no mundo virtual. Desta forma, em suas telas, Margô camufla o vazio, alimentando peixes imaginários, criando relações inexistentes, escrevendo frases para robôs online full time.

Aquele quadrado, em forma de tela e de vida, torna-se sua realidade em pixels, sem muitas perspectivas ou escapatórias. Ali é tudo descartável: um cardápio de pessoas solitárias, que projetam seus desejos e carências em perfis de redes sociais. Todos esbanjam tempo para preencher o vazio da existência, o que torna insuportável lidar com qualquer pessoa ou situação da esfera real. O silêncio e a paralisia fazem parte dos destinados à solidão. No escuro, na incompreensão, esse alguém só se sustenta a partir do olhar e da resposta de um outro qualquer. Os únicos requisitos para uma pessoa se tornar companhia é ela receber projeções e ser capaz de se tornar um personagem que satisfaça parcialmente as expectativas do outro incansável, por trás das telas, com o braço imobilizado, criando sua vida.

Segundo Margô, basta formatar a máquina que a vida torna-se mais simples. Já o ser humano vem sem prescrição ou manual, sendo uma máquina fadada ao fracasso. Aquela expressão "o fracasso dá caráter" é diluída em uma rede de solitários sedentos em colocar sentido em sua tela, ou melhor, sua vida. Com o cardápio online de perfis, contatos evasivos, alguns pertinentes para os momentos - cada vez mais prolongados - de solidão, quem é que vai se preocupar em se aprofundar em si mesmo? Quem vai abrir mão de aproveitar o sol à beira da piscina para mergulhar em suas contradições e limitações?

Um dos maiores temores do solitário é se identificar na solidão do outro. Incapaz de lidar com seu vazio e incompletude, o ser humano opta por não enxergar a dor de ninguém. Assumir os fracassos seria um preço muito alto para lutar contra a solidão. Assim, com o braço enfaixado, na vida quadrada, repleta de filtros, o ser humano prefere a companhia das máquinas.



Uma observação pertinente (ou não): após a minha sessão, um homem de uns 30 anos pediu ao gerente do cinema a devolução do ingresso argumentando que a qualidade da imagem era muito ruim. "A proposta do filme é essa", explicou o homem. Revoltado, o espectador frustrado disse que não era possível que, em 2014, ainda passassem filme no cinema sem a qualidade full HD.